Biologia:Teoria da vida

    

 

Margaret Ursula Mee 

100 anos de Margaret Mee

O Brasil tem centenas de motivos para comemorar a pintura de uma artista inglesa ímpar, persistente defensora da Floresta Amazônica e da Mata Atlântica.

 

   

"Eu sei que a minha morte não será o fim do meu trabalho. Aonde quer que eu vá, eu tentarei influenciar quem estiver destruindo nosso Planeta, de modo que a Terra tenha uma chance de sobreviver.”

Década de 1950. Mata Atlântica, arredores da Capital paulista. A inglesa Margaret Ursula Mee prepara- se para realizar uma das suas expedições de pintura botânica. O tema é a flora brasileira. O ponto de partida é Itanhaém, no litoral Sul, onde ainda há áreas de vegetação preservada. Junto com Margaret seguem o marido – Greville Mee – e uma amiga. A caminhada dura alguns dias e exige muito esforço físico, dada a falta de recursos. A ilustradora não dá trégua para as bromélias, observando e documentando tudo o que vê, mesmo quando os parceiros se põem a descansar.

O pouso é nas casas de caboclos e caiçaras, mas a estratégia de alimentação falha e o grupo chega a passar fome. Ao contrário do imaginado, os expedicionários não encontram onde se prover de mantimentos. No trajeto final, sob o sol tropical, são 18 quilômetros de andança pela praia, para depois seguir até a cidade de Registro e então retornar a São Paulo.

Das difíceis experiências iniciais, Margaret Mee extrai lições para transformar em sucesso muitas outras expedições botânicas, realizadas durante mais de 30 anos na Mata Atlântica e, principalmente, na Floresta Amazônica brasileira. Nascida a 22 de maio de 1909, em Chesham, na Inglaterra, a artista vem para o Brasil com o marido em novembro de 1951, e se estabelece em São Paulo, onde já morava sua irmã, Catherine Mary Brown.

 

Especializada em desenho e design, não demora a fazer as primeiras incursões em áreas urbanas da Capital e no litoral paulista, atrás de plantas nativas para ilustrar. Na primeira aventura pela Floresta Amazônica, em 1956, visita o rio Gurupi e passa por Belém (PA). Essa viagem inaugural à Amazônia lhe confere visibilidade e 25 de suas pinturas integram a primeira exposição, na Casa da Cultura Inglesa, em São Paulo, em 1958. A divulgação abre portas para sua atuação como ilustradora botânica em trabalhos científicos. Em setembro de 1960, Margaret é contratada pelo Instituto de Botânica de São Paulo (IBt) para ilustrar o fascículo da família Bromeliacea da publicação Flora Brasílica.

 

Como ilustradora científica, seu trabalho se desenvolve diretamente ligado ao dos botânicos Lyman Smith, do Instituto Smithsonian; Oswaldo Handro e Moisés Kuhlmann, ambos do IBt. Com esses pesquisadores, a artista adquire vasto conhecimento sobre as bromélias e finaliza a ilustração de várias espécies. Mas o livro não chega a ser publicado. Algumas dessas obras até são utilizadas no livro The Bromeliads – Jewels of The Tropics (As Bromélias - Jóias dos Trópicos) do norteamericano Lyman Smith, publicado nos Estados Unidos, em 1969. Mas, a própria autora demonstra decepção por tanto esforço tão pouco aproveitado.

 

O resgate do acervo e o devido valor ao trabalho da artista só vêm em 1992, com a publicação do livro Bromélias Brasileiras, organizado pela também ilustradora botânica Carmen Syvia Zocchio Fidalgo, colega de Margaret no IBt. A edição traz uma coleção de 59 aquarelas com 56 espécies de bromélias de 17 gêneros, plantas representativas de diversos estados do País.

 

É um trabalho de excepcional valor, pois a família Bromeliaceae é uma das mais numerosas entre angiospermas (plantas que produzem flores e sementes), embora de ocorrência restrita às Américas. Só uma espécie de bromélia não é americana: Pitcairnia feliciana, nativa do Oeste da África. As demais se distribuem desde a Argentina até ao Norte dos Estados Unidos, com tamanhos variáveis, da delicadeza de Tillandsia bryoides – semelhante a um musgo – até o gigantismo de Puya raimondii – cujos maiores exemplares atingem 8 metros de altura!

 

No Brasil, as bromélias são mais abundantes na Mata Atlântica. Margaret Mee retrata muitas delas durante os 5 anos de trabalho no Instituto de Botânica de São Paulo. Produz pelo menos 80 ilustrações, entre finalizadas e inacabadas, todas cuidadosamente arquivadas em salas especiais climatizadas, junto com outras quase 3 mil ilustrações de vários artistas e áreas diversas da ciência botânica, realizadas desde 1920 até o presente.

 

“Todos os trabalhos de Margaret Mee para o Instituto de Botânica são maravilhosos. O que muda são as plantas: bromélias têm muitas diferenças em suas formas. Algumas plantas são menores e outras enormes, bem coloridas ou quase sem colorido nenhum”, comenta Maria Cecília Tomasi, ela mesma ilustradora, além de responder pela Seção de Ilustração do IBt.

 

“O que vale é a técnica da artista, muito rica em detalhes. Nessas ilustrações, Margaret utilizava o guache com a técnica de aquarela. A tinta guache é mais espessa e confere às pinturas um colorido intenso. Sabemos que para os trabalhos do Instituto ela usou o guache porque ficaram guardados os frascos de tintas”.

 

Em maio de 1965, Margaret Mee inicia uma nova fase na sua iconografia e de militância ambientalista em defesa da Amazônia. O novo destino é o Jardim Botânico do Rio de Janeiro, para onde vai a convite do paisagista Roberto Burle Marx e do botânico Luiz Emygdio de Mello Filho. Os novos amigos orientam a artista na identificação das espécies por ela descobertas e nos procedimentos para depósito dos exemplares usados em descrições e novos registros.

 

Trabalhar suas pinturas só a partir de plantas vivas, na floresta, ou de plantas coletadas no ambiente visitado torna-se um diferencial da pintora. Ela cria um estilo pessoal de precisão e profundidade. O trabalho no Jardim Botânico a transforma em uma especialista na flora da Amazônia brasileira. Ao todo, realiza 15 longas jornadas de pintura botânica na Floresta Amazônica, retratando orquídeas, helicônias, bromélias, clúsias, catássetos, cactos e outras famílias. Suas ilustrações ganham várias edições de livros de arte e científicos, no Brasil e no Exterior. Suas exposições percorrem um bom número de países e atraem colecionadores particulares.

 

Ao mesmo tempo cresce a Margaret Mee ativista ambiental, sempre pronta a denunciar, já naquela época, a destruição da Floresta Amazônica. E seu nome entra para a história mundial da Botânica, com um legado próximo de mil ilustrações e quatro espécies de plantas que a homenageiam, todas bromélias e por ela descobertas: Aechmea meeana, Neoregelia margaretae, Neoregelia meeana, Nidularium meeanum.

 

Outra espetacular façanha artística da ‘caçadora botânica’ Margaret Mee envolve uma planta conhecida como flor-da-lua. Em expedições ao Estado do Amazonas, a artista ouve falar de uma planta cuja flor só permanece aberta durante uma noite por ano. Em 1982, encontra um exemplar com o que parecia ser uma flor, porém já murcha. Sabia tratar-se de um cacto, identificado no Século 19 por um coletor alemão como Strophocactus wittii (mais tarde reclassificado como Selenicereus wittii).

 

A realização vem em maio de 1988, quando a artista completa 79 anos. Numa expedição bem planejada, ela parte pelo rio Negro até o arquipélago de Anavilhanas e, num igarapé, localiza plantas prestes a florir. Monta a vigília e, pouco a pouco, a flor-da-lua cumpre seu ritual: abre se lentamente para a pintora, que a tudo documenta à luz de lanterna. À meia-noite, a flor está totalmente aberta. Encantada, a artista só encerra o trabalho às 3 da madrugada. E ainda acompanha, até as 8 da manhã, a flor se fechar – para sempre e por completo.

 

Os detalhes finais dessa pintura Margaret conclui em junho seguinte, em seu estúdio, no Rio. Em novembro daquele ano, ela lança, na Inglaterra, o livro In Search of Flowers of the Amazon Forests (À Procura de Flores da Floresta Amazônica), com suas aventuras e ilustrações. Duas semanas depois, morre num acidente de carro, em seu país.

 

Erram, porém, os que consideram encerrada sua carreira. A história da artista apaixonada pela flora brasileira continua com a criação, em 1989, de uma Fundação Botânica Margaret Mee em Londres (Inglaterra) e outra no Rio de Janeiro. Ambas com o objetivo de pesquisar e divulgar a arte da pintora, além de oferecer bolsas de estudos para o aperfeiçoamento de artistas ilustradores. Nesses 20 anos de existência das instituições, 19 artistas brasileiros participaram do programa de ilustração botânica em Londres, por meio do projeto Margaret Mee Fellowship. São 5 a 6 meses de aprendizado com a renomada artista inglesa Christabel King, ilustradora do Royal Botanic Gardens-Kew. Os bolsistas recebem suporte financeiro para hospedagem, alimentação e acesso a museus e exposições.

 

“Margaret Mee fomentou, tanto no Brasil quanto na Inglaterra, o interesse da sociedade em criar oportunidades para que artistas e cientistas brasileiros pudessem se especializar em Londres, no berço da Botânica, sede do mais importante herbário do mundo”, diz a ilustradora Fátima Selene Zagonel, sócia-fundadora do Centro de Ilustração Botânica do Paraná (CIBP). Fátima fez o curso artístico na Inglaterra, em 1999. De volta a Curitiba, criou o CIBP junto com os demais paranaenses agraciados com a bolsa e outros ilustradores botânicos. O Centro é filiado à Fundação Margaret Mee e funciona como entidade social e educativa, sem fins lucrativos. Organiza exposições, palestras e cursos livres de ilustração botânica para artistas que atuam profissionalmente nos setores industrial, gráfico e acadêmico, com ilustrações para teses e livros científicos.

 

“A ilustração botânica é, até hoje, a maneira mais fiel de se retratar uma espécie, apesar das técnicas avançadas de fotografia (macro e micro). Todos os recursos tecnológicos são bem-vindos, mas nada substitui o olho e a sensibilidade humana frente ao espécime ao vivo e à luz do dia”, conclui Fátima Zagonel. E esse olhar sempre tem algum toque de Margaret Mee, cujas sensibilidade e paixão até hoje emprestam cores e vida a plantas que de outro modo conheceríamos apenas pelo registro em branco e preto de gênero e espécie.

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Resgate de uma obra excepcional

 

Apesar de morarmos no mesmo bairro, foi graças a uma amiga comum que conheci Margaret Mee. Naquele tempo, no final dos anos 1970, Santa Teresa possuía um charme todo especial, e atraía quase todos os artistas que passavam pelo Rio de Janeiro. Não longe da casa de Margaret existira o Hotel dos Estrangeiros, albergue de Maria Helena Vieira da Silva e Guignard. Espalhados pelo bairro, deixaram suas marcas os artistas Visconti e Emeric Marcier, sem falar no grande núcleo que foi a casa e ateliê de Djanira na antiga rua Mauá. Mas não estou aqui para me alongar sobre Santa Teresa e sim para me deter sobre Margaret Mee, esta personagem que lá veio encontrar seu novo endereço...

 

Nas tardes de verão, nos reuníamos em torno de uma pequena mesa com tampo de vidro e algumas poucas cadeiras, para tomar chá e usufruir da conversa mansa, educada, com toques de humor bem inglês, que abordava peripécias e aventuras em matas, igarapés, amplos rios e até escarpadas montanhas perdidas nesse imenso Norte de nosso Brasil. Tudo isso acompanhado pela presença sorridente e solícita de seu marido, Greville, que às vezes, com olhar malicioso, deixava escapar também algum detalhe mais engraçado e pitoresco do relato. Apesar de não acompanhá-la em suas viagens desbravadoras, ele as sabia todas. Eram horas agradáveis que passávamos os três ali, a falar de viagens e descobertas.

 

O trabalho de Margaret – retratar a flora – requer um olhar científico, preciso, porém, o que torna o resultado final particular é este outro dom, o dom do artista que faz com que a espécie aí retratada adquira vida própria e se solte de seu suporte para ter uma tridimensionalidade e uma leveza que a tornam arte, e não somente reprodução científica.

 

O grande desafio de reencontrar e fotografar a obra de Margaret Mee necessitava, de minha parte, de um mergulho para revê-la e às raízes de toda esta relação. Foi uma tarefa, um caminhar árduo para, palmo a palmo, reconstruir os conhecimentos, encontrar os vários amigos, admiradores e colecionadores que cruzaram os passos da artista e desejaram ter uma obra sua. Entre os amigos e colaboradores, dois merecem uma menção especial: Roberto Burle Marx e Luiz Emygdio de Mello Filho, que não só foram os responsáveis por sua vinda ao Rio de Janeiro, como a auxiliaram na identificação de espécies. Ainda poderíamos citar o importante trabalho feito junto com o famoso botânico Lyman Smith e que resultou na magnífica coleção do Instituto de Botânica de São Paulo, tão bem guardada e conservada por Carmen Fidalgo e, hoje, pela equipe que a sucedeu.

 

Não posso deixar de registrar aqui, igualmente, o grande legado que permanece vivo e atuante, o multiplicador do talento de Margaret Mee: a formação de novos ilustradores botânicos, inspirados e estimulados por sua obra e apoiados e incentivados pela Fundação que leva seu nome e procura realizar os ideais que pautaram sua vida. Hoje o Brasil conta com um número expressivo de profissionais reconhecidos internacionalmente tanto por sua competência artística como científica, e que em núcleos diversos dentro do País não só aprimoraram seus conhecimentos como criaram escolas para repassar técnicas que aprenderam.

 

Um pequeno grupo de amigos e admiradores de Margaret Mee empreendeu esta jornada há 18 anos. Hoje, graças ao apoio e entusiasmo de nosso patrocinador, inicia-se o processo de catalogação da obra de Margaret Mee e com sucesso conseguimos agrupar um número significativo de seus trabalhos.

 

Sylvia de Botton Brautigam integra o Conselho Diretor da Fundação Botânica Margaret Mee desde a sua criação (1989). Foi responsável pela maioria das exposições retrospectivas da artista, buscando divulgar seu trabalho e seus ideais, além de valorizar o papel da ilustração botânica para o conhecimento e a consequente consciência da preservação de nosso meio ambiente.

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Agradecimentos:

 

Aos colecionadores particulares, pela autorização de reprodução das ilustrações expostas no Jardim Botânico do Rio de Janeiro durante a mostra Margaret Mee – Um olhar botânico À Seção de Ilustração Botânica do Instituto de Botânica de São Paulo, pela autorização de reprodução de parte do acervo da artista A Sylvia de Botton Brautigam, do Conselho Diretor da Fundação Botânica Margaret Mee, pelo apoio na realização desta reportagem.

 

 

 

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